segunda-feira, 24 de outubro de 2011

TECNOLOGIA, CONSUMO E DOR POR CAMILO ROCHA

O Caderno LINK de "O Estado de São Paulo" sempre traz textos que me surpreendem. Leiam o que se encontra reproduzido abaixo.

TECNOLOGIA, CONSUMO E DOR
Camilo Rocha

Documentário dá cara aos conflitos na extração de metais para celulares

“Esse lugar é o inferno na Terra. Pessoas trabalhando sob a mira de homens armados por toda parte. Meninos de 14, 15, 16 anos cavando nos buracos. Crianças com até quatro anos vendendo coisas e fazendo serviços para os soldados. Não há água potável.”
O cineasta dinamarquês Frank Poulsen sempre se considerou uma pessoa forte para cenários de pobreza e sofrimento, tendo ido a África várias vezes. Mas a visão da enorme mina de cassiterita de Bisie, num ponto remoto do Congo oriental, foi “muito além de tudo que eu já tinha visto”. “O sentimento de desespero está no ar”, descreveu ao Link pelo telefone.
Em Bisie, milhares de pessoas se dedicam a procurar um dos minérios que, muitos estágios depois, se transformam em componentes dos celulares que todos usam. Foi lá que o diretor conseguiu as imagens mais impactantes de seu documentário, Blood In The Mobile (Sangue no Celular, em tradução livre).
Concluído no fim de 2010, o filme teve exibições esporádicas desde então (incluindo sessões no festival brasileiro É Tudo Verdade deste ano). Entre este mês e o fim do ano, o alcance deve aumentar, com sua inclusão em diversas mostras e festivais nos EUA e Inglaterra.
Blood In The Mobile é um ruído desagradável em um mundo dominado por máquinas e pelo consumo destas. O filme alerta que as matérias-primas que fazem este século 21 ser tão bem informado e conectado muitas vezes vêm de lugares que remetem aos tempos da escravidão. As cenas de Bisie podiam muito bem ser do Congo Belga do fim do século 19, descrito em tons sinistros pelo escritor Joseph Conrad no clássico Coração das Trevas.
O diretor viveu uma saga para chegar ao seu apocalíptico destino final, como o protagonista do livro de Conrad. “Primeiro tomei o avião de Kinshasa (capital do Congo) até a cidade de Goma. Daí fui de helicóptero até a vila de Walikale. Depois, foram mais 200 quilômetros de moto. E, finalmente, dois dias de caminhada pelas montanhas.”
País que tem o tamanho da Europa Ocidental, a República Democrática do Congo (o antigo Zaire) repousa esplendidamente sobre imensas reservas de diamantes, ouro, cobre, cobalto, cassiterita, volframita e coltan (abreviação para columbita-tantalita). Fora as pedras preciosas, o resto da lista são materiais usados no processo de fabricação de qualquer aparelho de celular (leia mais aqui).
Os recursos minerais do Congo são motivo de disputas sangrentas. No fim dos anos 90, as tensões descambaram no conflito mais sangrento do planeta desde o fim da Segunda Guerra Mundial, envolvendo o exército congolês, milícias locais, forças de Ruanda, Burundi e mais seis países.
Chamada de Segunda Guerra do Congo ou Guerra do Coltan, ela terminou oficialmente em 2003. Mas a paz nunca chegou de fato à região, que segue castigada por violência, exploração, ausência de direitos humanos básicos, fome e doenças. De 1998 a 2008, 5,4 milhões de pessoas morreram em consequência dos conflitos. Os produtos das minas locais ganharam o nome neutro de “minérios do conflito”.
Não surpreende que as condições de trabalho num cenário assim sejam as piores possíveis. “A situação nas minas é análoga à escravidão. As pessoas ganham para trabalhar, mas estão aprisionadas, amarradas em dívidas com os grupos armados”, relata.
Fabricantes. Segundo o diretor, tão difícil quanto acessar a distante mina congolesa foi conseguir a participação da Nokia no documentário. Poulsen escolheu a empresa por ser a fabricante do celular que usa. Depois de dois meses de tentativas por e-mail e telefone, tudo que obteve foi uma resposta de duas linhas dizendo que a “empresa não tinha recursos para ajudá-lo”. O cineasta resolveu, à la Michael Moore, ir pessoalmente à sede da empresa na Finlândia.
“No filme, eu vou várias vezes à sede da Nokia. Eles me disseram, finalmente, que sabem do problema e que estão fazendo tudo que podem, mas não especificam bem o quê”, conta.
Poulsen não tenta provar que os celulares da Nokia usam materiais de Bisie ou de outra mina do Congo. Dada a quantidade de etapas atravessada pelos minérios até chegar na manufatura do aparelho, o rastreamento é trabalhoso. “Sei da dificuldade de conhecer a cadeia de fornecimento desses recursos. Mas só as indústrias podem descobrir isso e elas não o fazem. Se recusam a divulgar sua lista de fornecedores.”
A questão dos “minérios de conflito” esteve na pauta do Congresso americano no final da década passada. O resultado foi a inclusão de uma cláusula referente ao Congo num pacotão legislativo conhecido como Lei Dodd-Frank. De acordo com ela, empresas passam a ser obrigadas a provar que seus materiais não vinham da região conflituosa no Congo.
Mesmo sem entrar em vigor, a lei Dodd-Frank já teve um impacto muito além do previsto. Apavoradas com possíveis consequências, empresas americanas pararam de comprar qualquer coisa do Congo. Foi um duro golpe na frágil economia local, onde os minérios representam quase 12% das exportações.

Entrevista com o diretor de ‘Blood In The Mobile’, Frank Poulsen

Por que escolheu esse tema para filmar?
A maior parte das pessoas no Ocidente desenvolvido dizem que o que acontece na África não tem nada a ver com elas. Veem filmes na África e pensam: ‘O que isso tem a ver comigo?’
Quando meu produtor me falou dos minérios de conflito, topei na hora. Vi aí uma grande chance de mostrar como estamos todos conectados. Como nosso modo de vida depende do sofrimento de outras pessoas.
Qual a contribuição que o filme traz para essa questão?
A chave para fazer o filme acontecer era acessar uma dessas minas. Mesmo há quatro anos, os fatos eram conhecidos, muitas matérias já haviam saído, mas não havia quase imagens dos locais. Então eu queria algo novo e exclusivo, até para conseguir financiamento. Por isso, sabia que tinha que filmar no Congo. Fui quatro vezes e na quinta levei um diretor de fotografia dinamarquês comigo. Também tinha um produtor local com quem trabalhei em cada viagem. Demorou muito conseguir a papelada para que fosse o mais seguro possível ir lá.
Sua vida chegou a correr risco?
Claro, esse tipo de lugar é sempre perigoso. Muitos ali participaram de diversas atrocidades. Em muitas situações, era preciso ser muito cauteloso na hora de falar ou agir. Mas eu sou bom em negociar, em conquistar a confiança das pessoas. O que realmente dava medo era entrar nas minas. Ali não havia controle e eu ficava pensando, ‘se isso desabar, bom acabou tudo’. Foi bem estressante.
É verdade que uma criança te ajudou na filmagem?
Eu só tinha uma câmera e alguns dos túneis eram pequenos demais pra mim. Também era difícil filmar a atividade do dia a dia. Toda vez que entrava num buraco, todo mundo parava de trabalhar para olhar o homem branco. Então, acabei trazendo uma câmera pequena e deixei na mão de um dos meninos.

Em: O Estado de São Paulo, segunda-feira, 24 de outubro de 2011, L1.

http://youtu.be/wQhlLuBwOtE

Excelente segunda-feira a todos,
Marcos.

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