Lucidez em tempos de trevas...
Privilégio à custa de assédio
Vagões exclusivos para mulheres são um atestado público de sexismo e desigualdade, opina a autoraDEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA , DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, PESQUISADORA DA ANIS - INSTITUTO DE , BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS, GÊNERO - O Estado de S.Paulo
DEBORA DINIZ
Em final dos anos 90 fui morar no Japão. Estudava japonês e uma das primeiras palavras que minhas colegas me ensinaram foi chikan. Estranhei, pois jamais havia cruzado com essa palavra em meus manuais de "15 minutos diários de japonês", tampouco nos mangás que lia compulsivamente. Chikan é o personagem ao qual todas as jovens que andam de metrô nas grandes cidades são tristemente apresentadas - o voyeur, o abusador, o tarado do metrô. Poucas semanas em Tóquio ou Osaka foram suficientes para corporificá-lo: um homem de meia-idade que se vale do trem lotado ou quase vazio para lançar-se às mais variadas cenas de masturbação ou abuso sexual. Em geral ele age à noite e sozinho. O primeiro chikan que vi me emudeceu. Eram pouco mais de 10 da noite e eu voltava para casa. Não fui sua vítima, mas testemunhei uma jovem adolescente com saias pregueadas da escola fugindo ao vê-lo de calças abertas.
Passei a andar no vagão das mulheres sempre que saio à noite. Seja em Tóquio, na Cidade do México, em Nova Délhi ou no Rio. O recente caso de uma estudante de 21 anos molestada por um advogado no metrô de São Paulo denuncia o chikan paulistano. Um trem lotado e uma mulher jovem o encorajaram a agir. A moça desmaiou de pânico. Há quem diga que para contornar a persistência do abuso e a universalidade dos chikans a saída seriam os vagões só para mulheres. Enquanto espero o metrô em horários de pico já ouvi a tese de que o vagão feminino seria um privilégio indevido em uma sociedade que não discrimina homens e mulheres. Esse é um falso e superficial julgamento sobre as razões para a segregação espacial no transporte. O vagão de mulheres institucionaliza a violação de um direito fundamental da igualdade de gênero: o direito à mobilidade. O medo do abuso, da violência sexual ou da injúria sexista é uma barreira permanente para as mulheres no direito à mobilidade livre.
A existência de espaços públicos segregados denuncia dois absurdos da vida social: a discriminação e a violência. Há sobreposições entre os dois, pois são intensidades de um mesmo fenômeno de não reconhecimento da igualdade. Assim foi a história do racismo nos Estados Unidos ou na África do Sul: calçadas separadas ou linhas no piso do ônibus indicavam a organização do espaço em dois polos - o dos negros e o dos brancos. A razão para a segregação era o racismo, uma perversa ideologia que sustenta a inferiorização dos corpos pelas cores e origens. Mas é também a violência o que justifica a segregação espacial por sexo. Os vagões para as mulheres são a institucionalização do medo, o reconhecimento da persistência da violência sexista. Resolvem a desigualdade pela proteção que segrega. Para uma mulher não ser importunada ou violada por um chikan, a saída seria resignar-se à segregação. Não somos bem-vindas em todos os espaços, pois somente no vagão para as mulheres estaríamos livres dos abusadores. Há uma lógica perversa na proteção pela segregação: parte-se da certeza de que o sexismo é a regra, a violência dos homens contra as mulheres deve ser suportada e a melhor forma de proteger as mulheres é afastá-las do convívio universal no espaço público.
O direito à mobilidade livre é o que garante às mulheres o exercício de atividades prosaicas da vida cotidiana, como o trabalho, a educação, o cuidado dos filhos ou o lazer. Mobilidade é diferente de acessibilidade aos meios de transporte. Às mulheres não é negado o direito de ir e vir, como ocorre em algumas sociedades fundamentalistas, mas o direito de mover-se no espaço público livre da violência sexista. Sentir medo ao estar no espaço público é corporificar a violência sexista e reconhecer a segregação como regra de sobrevivência justa. São meninas e adolescentes a caminho da escola, mulheres trabalhadoras ou em momentos de lazer que se identificam com os vagões para as mulheres. São mulheres que voluntariamente optam pela segregação com medo da violência. O vagão para as mulheres deve ser um anúncio público do sexismo, deve nos envergonhar por denunciar a desigualdade e a violência e, o mais importante, deve nos provocar a encontrar alternativas mais eficientes para romper com a violência de gênero.
Em: O Estado de São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2011, Aliás, J7.
Em final dos anos 90 fui morar no Japão. Estudava japonês e uma das primeiras palavras que minhas colegas me ensinaram foi chikan. Estranhei, pois jamais havia cruzado com essa palavra em meus manuais de "15 minutos diários de japonês", tampouco nos mangás que lia compulsivamente. Chikan é o personagem ao qual todas as jovens que andam de metrô nas grandes cidades são tristemente apresentadas - o voyeur, o abusador, o tarado do metrô. Poucas semanas em Tóquio ou Osaka foram suficientes para corporificá-lo: um homem de meia-idade que se vale do trem lotado ou quase vazio para lançar-se às mais variadas cenas de masturbação ou abuso sexual. Em geral ele age à noite e sozinho. O primeiro chikan que vi me emudeceu. Eram pouco mais de 10 da noite e eu voltava para casa. Não fui sua vítima, mas testemunhei uma jovem adolescente com saias pregueadas da escola fugindo ao vê-lo de calças abertas.
Passei a andar no vagão das mulheres sempre que saio à noite. Seja em Tóquio, na Cidade do México, em Nova Délhi ou no Rio. O recente caso de uma estudante de 21 anos molestada por um advogado no metrô de São Paulo denuncia o chikan paulistano. Um trem lotado e uma mulher jovem o encorajaram a agir. A moça desmaiou de pânico. Há quem diga que para contornar a persistência do abuso e a universalidade dos chikans a saída seriam os vagões só para mulheres. Enquanto espero o metrô em horários de pico já ouvi a tese de que o vagão feminino seria um privilégio indevido em uma sociedade que não discrimina homens e mulheres. Esse é um falso e superficial julgamento sobre as razões para a segregação espacial no transporte. O vagão de mulheres institucionaliza a violação de um direito fundamental da igualdade de gênero: o direito à mobilidade. O medo do abuso, da violência sexual ou da injúria sexista é uma barreira permanente para as mulheres no direito à mobilidade livre.
A existência de espaços públicos segregados denuncia dois absurdos da vida social: a discriminação e a violência. Há sobreposições entre os dois, pois são intensidades de um mesmo fenômeno de não reconhecimento da igualdade. Assim foi a história do racismo nos Estados Unidos ou na África do Sul: calçadas separadas ou linhas no piso do ônibus indicavam a organização do espaço em dois polos - o dos negros e o dos brancos. A razão para a segregação era o racismo, uma perversa ideologia que sustenta a inferiorização dos corpos pelas cores e origens. Mas é também a violência o que justifica a segregação espacial por sexo. Os vagões para as mulheres são a institucionalização do medo, o reconhecimento da persistência da violência sexista. Resolvem a desigualdade pela proteção que segrega. Para uma mulher não ser importunada ou violada por um chikan, a saída seria resignar-se à segregação. Não somos bem-vindas em todos os espaços, pois somente no vagão para as mulheres estaríamos livres dos abusadores. Há uma lógica perversa na proteção pela segregação: parte-se da certeza de que o sexismo é a regra, a violência dos homens contra as mulheres deve ser suportada e a melhor forma de proteger as mulheres é afastá-las do convívio universal no espaço público.
O direito à mobilidade livre é o que garante às mulheres o exercício de atividades prosaicas da vida cotidiana, como o trabalho, a educação, o cuidado dos filhos ou o lazer. Mobilidade é diferente de acessibilidade aos meios de transporte. Às mulheres não é negado o direito de ir e vir, como ocorre em algumas sociedades fundamentalistas, mas o direito de mover-se no espaço público livre da violência sexista. Sentir medo ao estar no espaço público é corporificar a violência sexista e reconhecer a segregação como regra de sobrevivência justa. São meninas e adolescentes a caminho da escola, mulheres trabalhadoras ou em momentos de lazer que se identificam com os vagões para as mulheres. São mulheres que voluntariamente optam pela segregação com medo da violência. O vagão para as mulheres deve ser um anúncio público do sexismo, deve nos envergonhar por denunciar a desigualdade e a violência e, o mais importante, deve nos provocar a encontrar alternativas mais eficientes para romper com a violência de gênero.
Em: O Estado de São Paulo, domingo, 23 de outubro de 2011, Aliás, J7.
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