quinta-feira, 13 de outubro de 2011

VALE TUDO NO ASFALTO, BÁRBARA GANCIA

Minha queridíssima amiga Edna indicou-me a leitura da seguinte crônica que reproduzo abaixo. Boa, muito boa!
Vale tudo no asfalto de Barbara Gancia

O trânsito de São Paulo produz tipos peculiares. Já discutimos aqui o talibiker, radical do bem-viver que tenta impor seu estilo impoluto de vida goela abaixo a todos os pagadores de boletos de IPVA, consumidores de transgênicos e deglutidores de dogão com purê, maionese e/ou vinagrete.
Perceba a cena: estava eu na av. Faria Lima, zona sul, na hora do rush, trafegando pela pista da esquerda quando tive de acionar os freios para não entrar com tudo em cima de um sem noção desses. Camarada vinha em ritmo de subida de montanha de Tour de France, desprovido de qualquer sinalização na bike, ocupando, sem cerimônia, o espaço de um automóvel, meião da faixa, como se fosse um domingo de sol.
Saí de trás dele e tomei a pista do meio. Quando fomos chegando ao farol fechado à nossa frente, abri a janela e sinalizei para que parasse. Notei que estava de fone e sem capacete. "Você vai se matar", disse-lhe, com aquele tom que mães e juízes utilizam. "Quase passei por cima de você!" O rapaz era lindo, ninguém me tira a ideia de que passou até hoje à base de leite materno, arroz integral e pêssegos. Minhas palavras tiveram o efeito de removê-lo de um transe. "Achei que a luz traseira estava ligada, obrigado, valeu! Obrigado mesmo!"
Ele mexeu debaixo do selim, acionou uma luz estroboscópica muito interessante e partiu para ser o dono da rua de novo. Pensar que poderia estar todo ralado. Que música será que estava ouvindo no iPod? Alguma mãe no mundo deveria estar fazendo um bolo para mim naquele momento. Mas, em vez de receber um agradecimento simbólico, o que eu tomei a seguir foi um baita susto. Sujeito veio por trás, no meio dos carros e desceu o braço na lataria do meu Ford Focus Titanium novinho. Quem poderia cometer uma violência dessas contra Madre Tereza de Barbará?
Ora, o pedestre ranzinza, quem mais? A mais nova aberração produzida na ilha do Dr. Moreau do planalto paulista. Em qualquer outro complexo demográfico do mundo o pedestre sorri mais do que o motorista. Mas nós, ultimamente, estamos experimentando o rancor e o descontrole de pedestres que tentam a todo custo descontar anos de maus-tratos em um só quarteirão de caminhada.
O pedestre com o qual me alterquei não veio de uma faixa de trânsito. Surgiu, fuleiro, de trás de um ônibus. Estava atravessando no meio dos carros. Achou ruim porque eu havia tomando a faixa do ônibus quase na altura da esquina para fazer a conversão à direita. "O senhor bateu no meu carro por que mesmo? É fiscal da rua, por acaso?", perguntei-lhe, com tom algo enérgico. Sr. Pedestre certamente calculou que a gorducha de meia idade dificilmente reagiria à agressão.
Foi maus. A gordinha encrespa. Especialmente quando mexem no carro que ela vai levar 24 meses e muito imposto para pagar.
Quando viu que eu não estava para brincadeira, o melindrado encurvou os ombros e saiu de fino. Menos mal que não era um Dominguin do asfalto, o pedestre mais lamentável que o motorista pode encarar nestes dias de confronto homem x carro. O Dominguin desafia o carro como quem peita um touro na arena. Ai de mim...

Em: Revista de o jornal Folha de São Paulo, 18 a 24 de setembro de 2011, p. 98.

Enorme abraço a todos,
Marcos.

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