quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

ROBERTO BOLOÑO E SEU MONSIER PAIN

Prosa que corre como rio

O fantástico e o detetivesco estão no brilhante Monsieur Pain, de Roberto Bolaño

LUIZ ZANIN ORICCHIO - O Estado de S.Paulo

Lê-se de uma vez Monsieur Pain, de Roberto Bolaño (1953-2003), o que não chega a ser grande façanha. O livro tem apenas 140 páginas. Tamanho não é documento. Há textos de dez linhas que se arrastam. Com Bolaño tudo flui. Sua prosa corre como riacho. Rápida, leve, fresca. Esperta.

Assim, logo nos ambientamos com esse personagem. Acupunturista e estudioso em ciências ocultas em Paris, Pain é convocado por uma amiga à cabeceira de um moribundo internado em um hospital. Mas um grupo misterioso de pessoas (talvez espanhóis) impede que ele dedique seus cuidados ao doente, como lhe pedira a amiga, uma sedutora viúva, madame Reynaud. A história se passa na época da Guerra Civil Espanhola e o protagonista, que é também o narrador em primeira pessoa, lutou na Guerra Mundial de 1914-1918. Vive-se na Europa esse febril clima de entreguerras, com a suspeita de que o conflito entre republicanos e fascistas na Espanha serviria como um laboratório para a Alemanha nazista em seu plano de dominação.
O leitor esperto vai encontrar na Paris de Monsieur Pain, escrito no início dos anos 1980, ecos daquela cidade em que Julio Cortázar ambientou seu maior romance, O Jogo da Amarelinha, em 1963. Em especial naquilo que a velha Paris encarna de mistério e clima ligeiramente fantástico, noturno e chuvoso. Mas, claro, pode-se fazer mil aproximações para se chegar perto de Bolaño, e ele mesmo é um dos representantes desse pós-modernismo, que se nutre de referências variadas. O fato é que tem o fundamental para o grande escritor: voz própria e inconfundível já neste que é um dos seus primeiros romances.
Essa voz se ouve mesmo num texto breve, que não poderia ser chamado menor, dada a sua qualidade, mas que com toda a evidência não chega nem à perfeição de Noturno do Chile nem às alturas de Os Detetives Selvagens ou de 2666. Mas é livro escrito com poder de síntese, qualidade nem sempre cultivada por Bolaño. Seus Detetives Selvagens tem 620 páginas e 2666 quase chega a mil.
Numa pequena página introdutória, Bolaño fala do romance e de como, com ele, ganhou alguns dos seus primeiros prêmios literários (um dos quais em Toledo) numa época em que precisava desesperadamente deles, nem tanto por questões de prestígio literário, mas de sobrevivência pura e simples. Diz também que nunca "como naquela época se sentiu mais orgulhoso e mais infeliz por ser escritor". Antítese que é puro Bolaño. E acrescenta que tudo (ou quase tudo) no romance é verdadeiro, a começar pela doença do poeta chileno Cesar Vallejo (1892-1938), mal atendido pelos médicos franceses, o atropelamento de Pierre Curie por um veículo puxado a cavalo na rue Delphine, alguns aspectos do mesmerismo e, segundo Bolaño, mesmo Pain seria real, tanto que é citado por uma certa Georgette, em suas "rancorosas, apaixonadas e inermes" memórias. Daí se vê a facilidade com que Bolaño mescla personagens (e fatos) reais a produtos exclusivos da sua imaginação.
Contudo, o que existe de reconhecível na rede de diálogos montada por Bolaño é a afinidade insuspeitada com a obra de Edgard Allan Poe, citado já em epígrafe, num diálogo de seu conto Revelação Mesmérica. Não escapa também ao leitor, além da já mencionada captação da atmosfera de Cortázar, o gosto pelos labirintos de Borges, o apego à trama detetivesca e o apelo aos elementos do fantástico como recursos para turbinar a narrativa.
Narrativa que avança célere à medida que Pain tenta atender o sul-americano doente, vê-se impedido de entrar no hospital, conhece alguns tipos suspeitos pela noite parisiense, anda em estranhos lugares e trava conhecimento com seres ainda mais bizarros. Tudo isso num clima que, sabiamente, boia indeciso entre o real e o onírico, deixando o leitor suspeitoso quanto à credibilidade do personagem, que narra em primeira pessoa.
Também como acontece com o Bolaño mais maduro, a narrativa de Monsieur Pain, embora lúdica, nunca é tola. Ou frívola. Grandes ideias e paradoxos humanos vão sendo destilados e debatidos por esses pequenos e grandes personagens que passam pela vida de um pobre-diabo, sustentado por uma pensão de Estado por sua participação na 1.ª Guerra, e que nunca parece saber exatamente o que acontece ao seu redor, ou consigo próprio, por mais culto que pense ser.
Aliás, em uma das passagens do livro, Pain refere-se à leitura "sempre tonificante" das Vidas Imaginárias, de Marcel Schwob. Vidas, as nossas próprias, que nos são concretas e palpáveis, mas que, vistas de outra perspectiva, parecem tão diáfanas e abstratas. Esse é um tema, em abismo, perseguido por Bolaño ao longo de toda a sua obra, e que já estava prefigurada neste inquietante e brilhante livro.

 http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,prosa-que-corre-como-rio,805252,0.htm acesso em 01/12/11.

Abraço chileno a todos,
Marcos.

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