sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

AS CANÇÕES DE COUTINHO

Não sou a favor de endeusamentos. Contudo, sou a favor de seres ultra, hiper, mega humanos. E o incrível, fantástico, genial Eduardo Coutinho o é. E como o é...

Escrevo o seguinte poema dedicado a ele e a seu novo documentário: As canções

Eu sou o que eu sou
Eu não sou o que eu tenho
Porque eu nada tenho
E eu nada quero ter
E quem não é?
...
E quem tem?
...
Quem verdadeiramente tem não precisa dizer e mostrar que o tem
Porque simplesmente tem e o ter não lhe diz nada dado que ele sabe que ter nada é,
mas sim o ser é que é
Quem falsamente tem precisa dizer e mostrar que o tem
Porque simplesmente tem e não o é e não o foi e não o será
Ingenuidade?
Mediocridade?
Imbecilidade?
Quiçás: promiscuidade!

Trailer do documentário "As canções" de Eduardo Coutinho:







Canções de vida e afeto

De Roberto Carlos a Noel Rosa, filme revê imaginário romântico do povo brasileiro


LUIZ ZANIN ORICCHIO - O Estado de S.Paulo
No princípio era o espanto, pai de toda a filosofia e toda a arte. O cineasta Eduardo Coutinho não deixa de se espantar com um fato básico: "A necessidade que as pessoas têm de se comunicar, falar com o outro, abrir-se". É o que está na base do seu cinema. A necessidade vital de diálogo, "que leva as pessoas a dizerem coisas incríveis diante da câmera". Só que, desta vez, além de falar, como em seus outros filmes, elas também cantam. Surge então esse documentário intitulado, de modo singelo, de As Canções.
O método de pesquisa não diferiu muito dos filmes anteriores de Coutinho, autor de um clássico como Cabra Marcado Para Morrer e filmes recentes marcantes como Santo Forte e Edifício Máster. Os personagens foram selecionados em vários pontos do Rio de Janeiro, pessoalmente, através da internet ou anúncios em jornais. A pergunta básica era: "alguma canção marcou a sua vida?". Em caso positivo, a pessoa estaria disposta a cantá-la e dar seu depoimento para um filme?
A pesquisa durou dois meses, durante os quais 237 pessoas participaram e 42 chegaram a ser filmadas. Na montagem final, restaram 18 depoimentos-canções. Os personagens escolhidos têm de 22 a 82 anos de idade. Cantam canções de todo o tipo. De Noel a Chico Buarque, passando pelo inevitável Roberto Carlos. Canções de amor, de saudade, de dor de cotovelo. Todo um imaginário brasileiro romântico desfila por esses depoimentos musicais.
O dispositivo cinematográfico é ainda mais depurado que o do célebre Jogo de Cena, filme em que Coutinho mistura personagens anônimos e atrizes famosas que interpretam suas histórias. Neste, o cenário era o palco de um teatro, com um fundo de poltronas. "Agora é ainda mais despojado. Uma cadeira preta contra um fundo preto. As pessoas entram, cantam, falam e depois saem de cena", diz. "Comparado com As Canções, Jogo de Cena era um verdadeiro Titanic", brinca. De fato, tudo é simplificado ao nível de uma pobreza franciscana. Do cenário à interpretação das músicas, sempre a capella, sem acompanhamento, vai-se ao osso das emoções humanas com pouquíssimos elementos técnicos.
Coutinho diz que selecionou os personagens tanto pelo canto ("Era preciso um mínimo de qualidade vocal") quanto principalmente pelo depoimento no qual explicavam por que aquela era a canção da sua vida. "Não queria uma definição técnica ou intelectual. Se o cara dizia, por exemplo, que havia escolhido certa música porque ela tinha um intervalo de quarta muito bonito, estava eliminado."
Não contavam, portanto, razões estéticas racionalizadas, mas sim o impacto emocional que determinada canção teve sobre a vida de alguém e a maneira como essa pessoa era capaz de relatar a experiência emocional.
Havia muito Coutinho notara a importância da música na vida das pessoas. Quem não se lembra daquele personagem de Edifício Máster que conclui seu depoimento interpretando My Way, a canção celebrizada por Frank Sinatra? (Na verdade, a letra inglesa é de Paul Anka, versão de uma composição francesa chamada Comme d'Habitude, de Claude François e Jacques Revaux). A sequência era tão forte que o cineasta, avesso a exageros, evitou terminar o filme com ela. Também em Jogo de Cena uma das entrevistadas se emociona às lágrimas ao cantar Se Essa Rua Fosse Minha, porque ela lhe lembra o pai. Portanto, a ideia tanto ficou que ele resolveu circunscrever a pesquisa da intimidade a esse registro musical da biografia de cada um.
Depois de Jogo de Cena, considerado uma revolução no documentário brasileiro (colocando inclusive em questão a fronteira entre o cinema documental e o ficcional), Coutinho rodou Moscou, bastidores da montagem de uma peça, As Três Irmãs, de Chekhov. O filme foi considerado um sintoma de impasse por vários críticos, incluindo pesos pesados como Eduardo Escorel e Jean-Claude Bernardet, ambos admiradores do cinema de Coutinho. As Canções seria resposta a isso?
"Jamais", diz Coutinho, "embora depois de Jogo de Cena de fato tudo seja mais difícil para mim". Jogo de Cena parece uma espécie de limite, obra de inventor e mestre ao mesmo tempo, difícil de ser ultrapassada. "Mas de qualquer forma, As Canções retoma Jogo de Cena e, como ele, não quer passar qualquer tipo de mensagem a ninguém". Ele brinca que uma de suas frustrações é que nenhum dos personagens elegeu como canção de sua vida Mensagem, celebrizada na voz de Isaurinha Garcia. Cantarola: "Quando o carteiro chegou e meu nome gritou com a carta na mão...". Esta seria a única "mensagem" que Coutinho admitiria em seu filme. "Adoro essa música", diz. Mas ela não pintou no repertório.
O que as pessoas cantam? De tudo, da bossa nova ao romântico, de Roberto Carlos a Noel Rosa. Nesse repertório diversificado surge em filigrana toda diversidade desse continente a que chamamos música popular brasileira. O brasileiro é um povo musical, que convive com a música o tempo todo, ouve, repete, cantarola. Com os amigos no bar ou sozinho, em casa, debaixo do chuveiro. Canta enquanto prepara uma refeição, passa roupa ou lava a louça. A música está presente n seu dia a dia. É amiga, amante, consolo, muleta ou fonte de catarse. É ponto de referência dos grandes momentos de uma vida.
Em geral, lembra passagens da vida amorosa de cada um. A música de dor de cotovelo expressa o momento em que pensamos que o mundo veio abaixo por um amor desmanchado. Lembramos de uma pessoa que partiu ou que morreu, e cuja memória ficou como que corporificada por aquela música. Cantamos para trazer de volta essa presença que já não é mais física e reside apenas na memória do afeto. "As mulheres evocam essa memória afetiva com muito mais força que os homens", diz Coutinho. No entanto, há o caso do rapaz que se lembra da mãe e de uma determinada canção que ela gostava, e tenderíamos a chamar de brega, mas que leva o personagem às lágrimas.
Há mesmo muita emoção ao longo dessas Canções de Coutinho. A música funciona como uma espécie de nó em torno do qual os afetos se cristalizam. São metáforas de significados múltiplos, pontos vivos na memória afetiva das pessoas. As Canções nos mergulha nesse complexo afetivo-memorialístico condensado às vezes numa única música. Todos nós, independentemente de sexo, classe social ou cultura, temos uma história musical, uma experiência sonora da existência. "Para compor ou ouvir música não é preciso sequer ser alfabetizado", lembra Coutinho. "É algo absolutamente democrático".
Não por acaso um filme como este é feito no Brasil. Avesso a considerações de ordem geral, Coutinho admite que "a dinâmica cultural do Brasil se expressa mais que tudo através da música. Isto sim é extraordinário". Como é extraordinário que alguém tenha tido a ideia de fazer um filme sobre isso. Em meio a tantos documentários musicais, este usa a música como meio para alcançar a subjetividade das pessoas. Elas falam, como nunca, através das trilhas sonoras de suas vidas.

Confronto honesto com o outro

Há um "mistério Coutinho", essa sua capacidade de desarmar as pessoas


Luiz Carlos Merten

Há algo de especial no cinema de Eduardo Coutinho, e não tem nada a ver com essas convenções idiotas que estabeleceram Cabra Marcado para Morrer como maior documentário do cinema brasileiro. Ninguém mais pensa o filme, ninguém mais o repensa, o que é mais importante. O maior documentário pode ser muito bem, pela riqueza e complexidade, o Santiago de João Moreira Salles, que tem mais - não tenhamos medo da palavra - "camadas". Mas isso, claro, não diminui o gênio de Coutinho nem a sua extraordinária capacidade de invadir a privacidade das pessoas.
Há um mistério Coutinho e é justamente essa capacidade de desarmar as pessoas, de deixá-las à vontade para que elas se abram. Muita gente não gosta tanto de As Canções, e daí? De novo, as pessoas abrem seu coração, seus sentimentos, sua intimidade. Coutinho, há anos (décadas?), não precisa provar mais nada, mas o mérito do novo filme é que, mais uma vez, ele nos confronta com o outro.
Esse outro nunca é exatamente o que esperamos que seja, mas uma pessoa que canta aqui, outra que conta uma história ali, vão tecendo uma rede de sentimentos e, no limite, é possível se projetar em um, em outro. O mais elementar dos mecanismos (psicanalíticos?) do cinema é a chamada "identificação projetiva". Mas digamos que você não queira se identificar com os personagens de As Canções. Mesmo assim, será difícil deixar de reconhecer a honestidade do autor e a sinceridade dos depoimentos. Coutinho conseguiu, em seu novo filme, contar uma historia sentimental dos brasileiros. Roberto Carlos, o "rei", deveria se ajoelhar aos pés de Coutinho. Roberto Farias, um diretor respeitável, fez três ficções com ele, quando o mito ainda se construía. Coutinho, com um documentário, fez o filme definitivo para mostrar que Roberto, mais do que ninguém, fornece a trilha de nossos amores. "Eu tenho tanto/pra te falar/mas com palavras, não sei dizer…" Grande Roberto, enorme Coutinho.
Abraço humano a todos,
Marcos.







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