segunda-feira, 14 de novembro de 2011

EITA DANIEL PIZA BOM PRA CARAIIIOOO!!!

Clássicos & Comerciais

Passei boas horas das minhas férias lendo clássicos e sobre eles, e esta coluna é dedicada aos leitores que não acham que é preciso ser um excêntrico ou lunático para passar boas horas das férias lendo clássicos e sobre eles. Pego emprestado o título de uma coletânea de resenhas de Edmund Wilson, Classics & Commercials (uma das tantas não traduzidas no Brasil), porque a palavra 'clássicos' cheira a chatice, a calhamaço que se deve ler por ser 'importante', não por ser prazer ou entreter. E os clássicos em realidade são comerciais, ou seja, se não venderam muito quando lançados, venderam muito depois e até hoje. Quantas edições já não teve a Odisseia? Homero é um dos maiores best-sellers da história... E divertiu tanta gente em tantas gerações que continua a ser usado em filmes juvenis de Hollywood e a ser recriado por grandes escritores. O que seria, aliás, de Joyce, Pound, Mann, Broch e muitos outros sem os clássicos? Mas os 'modernos' de hoje consideram os clássicos 'caretas'.

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Pois acaba de sair uma nova e admirável tradução da Odisseia (na coleção Penguin Companhia), feita pelo português Frederico Lourenço, e o idioma é o primeiro a agradecer. Não sei grego, mas sei que traduções de Homero para o inglês, sobretudo a de Robert Fagles, me são muito mais satisfatórias do que as que encontrava em português. No Brasil, por exemplo, a respeitável escola de Odorico Mendes gerou versões difíceis, obscuras, com estéreis tentativas de recriar sonoridades do original. A de Lourenço é como a de Fagles: extremamente precisa e, ao mesmo tempo, cristalina. Mantém o tom de rapsódia, mas flui como uma nau. Homero usa termos como 'vomitar' e 'gozar', os marinheiros 'choram' e não 'derramam prantos', os deuses dizem coisas como 'não se pode confiar nas mulheres'. As descrições têm enorme poder de síntese e musicalidade, como quando Ulisses rejeita a proposta da sublime Calipso: 'Se algum deus me ferir no mar cor de vinho, aguentarei:/ pois tenho no peito um coração que aguenta a dor./ Já anteriormente muito sofri e muito aguentei/ no mar e na guerra: que mais esta dor se junte às outras'.

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De Homero e também de Virgílio, Ovídio e da Bíblia, claro, veio a Comédia de Dante (só depois chamada de 'divina'), e o grande trunfo da biografia de Barbara Reynolds (editora Record) é descrever as ligações entre a vida e a obra do gênio toscano onde são pertinentes. No Brasil é raro encontrar esse tipo de biografia crítica, mas ele é o mais adequado para lidar com grandes criadores, ainda mais quando restam tantas dúvidas factuais (o que Reynolds nem sempre lembra). Ela mostra como Dante levou todos seus amigos e inimigos para sua poesia narrativa, logo se detém nas questões políticas e religiosas de sua época (guelfos, gibelinos e suas facções); mas a ênfase é em entender melhor sua arte. Eu nunca tinha percebido com tanta clareza a importância da pintura para Dante, espécie de Giotto das palavras, e Reynolds mostra também como seu estilo era sintético e misturou de forma inédita os registros coloquial e erudito. Moralismo cristão à parte, há em Dante dinamismo, variedade, ousadia, teatralidade, frescor - nada, enfim, do que o termo 'clássico' sugere.

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O que James Shapiro faz em 1599 - Um Ano na Vida de William Shakespeare (Planeta) é diferente, mas o melhor do livro são justamente as interpretações da obra. Nesse ano Shakespeare fez seus dois maiores dramas históricos, Henrique V e Júlio César, escreveu a comédia romântica As You Like It e iniciou Hamlet; ou seja, em 12 meses, escrevendo apenas algumas horas à noite e outras de manhã, fez o que não mais que uma dúzia de escritores levou a vida inteira para fazer... Shapiro esmiúça demais as questões inglesas com Irlanda e Espanha e em alguns momentos parece estar escrevendo a biografia do duque de Essex. Mas dá detalhes do Shakespeare ator e empreendedor de teatro, arriscando-se na construção do Globe e, também por isso, em levar sua dramaturgia aonde não tinha ido, sem ter nobreza ou povo como público-alvo. Shakespeare não bate em nada com a imagem dos gênios como pobretões incompreendidos, inadaptáveis... O maior achado de Shapiro é aproximar os solilóquios de Shakespeare ao seu gosto pela leitura de ensaios como os de Montaigne.

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Sim, Antônio Vieira é o 'imperador da língua portuguesa', como o chamou Fernando Pessoa, ou pelo menos um de seus monarcas, ao lado de Camões. E a edição de sua obra Essencial por Alfredo Bosi e a publicação do perfil escrito por Ronaldo Vainfas (ambos Companhia das Letras) são muito bem-vindas. Mas Vieira não foi um ficcionista como Homero, Dante e Shakespeare e sua eloquência não raro esteve a serviço de teses para lá de absurdas. Fala-se muito em sua ausência de antissemitismo, em sua objeção à escravidão dos índios e em seu confronto com a Inquisição, mas Vieira era em tudo e por tudo um porta-voz da Contrar Reforma, um bajulador ardiloso e barroco da Coroa colonialista e escravista. Chegou a ponto de justificar a escravidão dos negros comparando seus sofrimentos físicos aos de Cristo, alegando que o cativeiro libertava suas almas... De qualquer modo, ler sermões como o da Sexagésima é mesmo ver distinção e clareza, palavras semeadas como estrelas, ainda que sem o fruto da liberdade.

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Que boa ideia criar o Dia D para homenagear Drummond, cujo centenário será celebrado no ano que vem (como o de Nelson Rodrigues, outro clássico que segue vendendo bem). Cosac Naify já lança volumes de crônicas em capa dura, Companhia já faz edição especial do Poema de Sete Faces, etc. Numa das crônicas, ele fala sobre livros para ler em seis meses numa ilha deserta, inclui Machado de Assis e diz que os 20 melhores são os que estão em nossa estante e seriam tocados de olhos fechados: 'A estante já é uma seleção'. Suas notas e apontamentos literários mostram o crítico agudo por trás do poeta eterno (e do cavalheiro que, infelizmente, não sabia negar um elogio insincero a um amigo ou admirador). Todo autor clássico, na verdade, foi ou poderia ter sido um grande crítico. A arte duradoura é a arte que pensa, não apenas a arte que expressa.

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E que bom é entrar nas livrarias brasileiras e ver mais clássicos nas estantes, traduções novas e feitas do original como de O Duplo, de Dostoievski (editora 34), e livros injustamente pouco lidos hoje, como os de Georges Bernanos, cujo Diário de um Pároco de Aldeia (editora É) antecipa a voz do narrador de O Braço Direito, de Otto Lara Resende. Mesmo quando relativamente esquecidos, os clássicos seguem vivos.

Cadernos do cinema. Almodóvar é um dos poucos cineastas atuais que vê sua arte como convergência das outras - teatro, pintura, música - e com isso sabe que cultiva ainda mais sua particularidade como linguagem. No novo filme, com o lindo título A Pele Que Habito, baseado num romance de Thierry Jonquet, conta a história do cirurgião obcecado em reconstruir a pele da mulher e atinge momentos de memorável beleza plástica (perdoe-se o trocadilho), com remissões às 'majas desnudas' e às criações de Louise Bourgeois, embora livre das cores vivas que sempre empregou. O enredo tem suas falhas na parte final, como a demonstração inocente de confiança do médico (Antonio Banderas), mas o clima do filme - aflitivo, quase gótico em algumas passagens - é sustentado o tempo todo em meio às questões que sempre motivam o cineasta, como a transexualidade. Se trocássemos de corpo, trocaríamos de identidade? Ou a memória é a carne que não se corta, o lar que não se tira?


Eliminei, cortei, decepei os fragmentos "Por que não me ufano (1)" e "Por que não me ufano (2)" por não concordar com o que o Daniel Piza escreveu. Mas mesmo assim, gosto de seu texto e por isso o reproduzi acima. Minini inteligentchi pra cacetisss...

Abraço afetuoso e lúcido a todos,
Marcos. 

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