Prazer e Dor
De vez em quando, nas
discussões de nosso grupo de cinema, surge a questão da falta de perspectiva
positiva em determinados filmes, como um incômodo para algumas pessoas.
A meu ver, não é papel
do cineasta solucionar dificuldades/problemas ou salvar o mundo. Cabe a ele
retratar a vida: cada filme é uma fatia maior ou menor dessa vida, simples ou
enriquecida conforme o objetivo do diretor. Um bom filme, para ser bom, não
precisa apontar saídas felizes, punir os culpados, fazer justiça, enaltecer os
valores morais ou mostrar qualquer réstia de esperança. Isso até pode ocorrer,
desde que caiba na “fatia”. Evidentemente não tenho nada contra os bons filmes
que só divertem ou que contam histórias edificantes, com resultados positivos.
Mas se o filme foi feito para revelar situações em que a crueldade humana é
assustadora, onde a esperança se perdeu, onde a dor é uma constante, não vejo
porque o diretor tenha que “colorir” o cinzento daquele pedaço de mundo, só
para deixar o espectador mais confortável. Quem disse que o cineasta tem a obrigação
de aplacar nossa angústia? Não é função do cinema (como da arte em geral)
salvar o mundo, nem mesmo ser politicamente correto. Basta retratá-lo cruel ou poeticamente,
sem jamais garantir boas soluções.
Às vezes um filme é
denso, pesado ou violento, o que muitas vezes nos incomoda. Embora isso pese,
creio que a avaliação da qualidade de um filme não se reduz ao mal-estar ou
bem-estar que ele provoca no espectador. Há filmes, como Biutiful (2010), de Alejandro González Iñárritu, onde aquelas
pessoas lutam para sobreviver em circunstâncias tão adversas; seria fantasioso,
naquele contexto, mostrar soluções mágicas para a miséria humana. Ali não há
espaço sequer para sonhos...
Convém lembrar que as
situações representadas num filme transcorrem num determinado período de tempo.
Depois que o filme acaba, é imprevisível saber o que vai acontecer e o rumo que
as personagens tomarão. Tanto o final que não mostra saída como o que termina
esperançoso ficariam à mercê das circunstâncias posteriores, podendo tanto
melhorar os prejuízos do filme pessimista, quanto estragar a chance de
felicidade do outro. Seria uma pretensão onipotente do diretor dar garantias de
que a vida não apresentaria qualquer saída ou de que tudo continuaria bem para
o outro final. Nada fica congelado na vida porque ela é dinâmica, o tempo não para
e as circunstâncias que nos rodeiam variam.
Acho que essa cobrança
de final feliz se deve ao fato de que nossa relação com o mundo hoje é
hedonista, onde temos obrigação de estarmos sempre bem, alegres, esperançosos,
confiantes, bem sucedidos e, se possível, permanentemente jovens. É esta a
proposta do mundo contemporâneo. Ninguém deve sofrer dores de qualquer
natureza, pois a indústria farmacêutica está aí para impedir. Não se pode ter
tristeza, insegurança, medo, sofrer por amor, para não ofuscar essa obrigação
de ser feliz. Não é à toa que a literatura de autoajuda nunca foi tão prolífera
como agora. Ora, como na verdade ninguém pode viver eternamente em estado de
negação, com óculos cor de rosa, os resvalos da realidade interna e externa nos
forçam a entrar em contato com as vicissitudes que o ato de viver nos impõe.
Talvez, por isso, a depressão seja tão frequente atualmente, entre outros fatores
por conta dessa impossibilidade humana de apenas desfrutar de coisas boas ou de
ser sempre capaz de passar rasteiras nas desgraças. Assim, como não podemos
cumprir esse imperativo de felicidade permanente, sentimo-nos fracassados ou
incapazes, como a criança que não consegue corresponder à alta expectativa de
pais exigentes.
A natureza e nós não
somos peças de uma engrenagem que seguimos um plano sobrenatural, mas somos seres que lutamos por nossa sobrevivência, em meio a imprevistos, obstáculos e frustrações, o que não
significa que não tenhamos nosso quinhão de realização pessoal, profissional,
de alegrias, trocas de afeto.
Não é crime querer ser
feliz, porém não é possível ser feliz o tempo todo, ou nem sempre tudo se
resolve satisfatoriamente como a gente gostaria. É difícil aceitar isso porque
é da natureza humana buscar o prazer e fugir da dor. A gente reluta aceitar que
no mesmo pacote da parte prazerosa venham juntos desapontamentos, tristezas,
doenças, ausência de beleza, abandono... O que não é natural é que para tanta
gente o pacote seja quase todo de dificuldades, principalmente quando ele é
acentuado pelas desigualdades sociais, pela ganância dos poderosos, pela
pobreza que impossibilita qualquer acesso a recursos de sobrevivência...
Rianete Lopes Botelho, em jornal do grupo Cinema Paradiso, nº 285, 02/03/2011.
Abraço dilacerado pelo texto da Rian,
Marcos Êçá.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.