sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

ALEMANHA, ANO ZERO+RIANETE LOPES BOTELHO



Dá para entender o absurdo?

A minha primeira “lição de casa” no curso sobre Neorrealismo italiano, ministrado pela Cláudia, foi assistir ao filme Alemanha, Ano Zero (1947), de Roberto Rosselini. O filme foi como um rolo compressor passando sobre minha alma e me mantendo num estado emocionado todo o tempo. Deixei a poeira baixar e hoje estou tentando registrar o que ele causou em mim e sobre o que me fez refletir.
O filme se passa em Berlim, na Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial, destroçada, arrasada, como parecem estar os sobreviventes daquele país. Fico imaginando o que a derrota representou para o povo alemão, que tinha conseguido não só um bom padrão de vida mas, principalmente, sido doutrinado (sobretudo a juventude nazista) a crer-se como um povo superior, composto de super-homens nietzschianos. Quando se luta sabendo-se igual ou inferior ao adversário, a derrota dói menos. Para quem se julga pertencendo a uma raça superior, assimilar que todos os homens são igualmente frágeis e passíveis de irem ao chão – por não serem semideuses, mas apenas “vis mortais” – a tarefa é inglória. Esse aspecto do sentimento da perda da pseudo-superioridade é representado, no filme, pelo irmão mais velho do menino protagonista – ex-soldado do exército nazista, agora escondido como um animal acuado com o medo da prisão –, e do seu pai que se lamenta, com tristeza: “Antes éramos nacionais socialistas, hoje somos nazistas” (referindo-se ao sentido pejorativo dado ao termo). Como estava doente, sentia-se um peso para seus filhos, que faziam de tudo para conseguirem algum alimento para a família. “Sou um estorvo, não sirvo mais para nada”, costumava dizer. Chegaram a pedir a Deus que o levasse. Somente Edmund, o garoto, e sua irmã traziam comida e carvão para a casa.
O filme passa um clima de humilhação e vergonha. O próprio título diz muito bem o que é mostrado: a tentativa de sobrevivência dentro de uma realidade de destruição onde tudo precisa recomeçar do zero. Mas acho que esse ano zero se refere apenas ao aspecto material da reconstrução da cidade, das instituições, etc., porque é impossível zerar a subjetividade das pessoas sobreviventes. Não dá para apagar o horror pelo qual elas passaram, reconstruindo-as como se nada tivesse acontecido. Com as coisas pode ser possível, com gente não.
No ano zero pós-guerra parece não haver reserva humana civilizada, mas apenas o instinto de sobrevivência. E o filme mostra com realismo a exploração de crianças por adultos, moças que se prostituem por comida e cigarros, os fortes eliminando os mais fracos, como na selva, sem disfarces. A destruição que uma guerra traz, desnuda a capa civilizatória dos homens, mostrando sua animalidade escondida. É cada um por si e o diabo por todos.
Nas suas andanças em busca de alimento, Edmund encontra um ex-professor seu que parece acolhê-lo carinhosamente, mas também o usa para obter algum lucro. Numa de suas conversas, o professor faz um comentário que Edmund interpreta erroneamente, pondo em prática, posteriormente, o que acha ter sido a ideia do professor.
A doença do pai do menino se agrava por ele se alimentar tão pouco. É internado, e só pelo fato de fazer três refeições diárias sua melhora é visível, e volta para casa. Mas vislumbra que tudo se repetirá, porque a escassez de alimento continua. O menino volta a ouvir o quanto era difícil para seu pai viver daquele jeito. Assim, toma a atitude de lhe dar um chá envenenado. Após o enterro, o menino conta, ao professor que fez o que ele lhe sugerira. A reação indignada do homem, deixando claro que não fora essa sua recomendação, deixa o menino aturdido. Seu desamparo é magnificamente mostrado pelo cineasta: ele perambula pelas ruínas da cidade durante muito tempo, sozinho, parecendo saber que não podia contar com ninguém. Caminha, caminha, entra e sai de várias casas destruídas (como ele), sobe e desce de escadas, parecendo procurar uma saída e sem vislumbrar nada que pudesse ajudá-lo. Até que sobe ao alto de um prédio e de lá se joga, porque nada mais lhe restava.
O impacto desse final é terrível! Edmund não podia zerar o que tinha feito e recomeçar a reconstruir. Parece um paradoxo, mas aquela foi a única saída que ele achou para sobreviver (outra seria a loucura). A certeza de sua impotência e a dor do seu desamparo constituiu a condição trágica a que se viu levado aquele menino.
O filme deixa claro, de forma dura, a desesperança a que o ser humano é exposto em determinadas situações. A gente sabe que a fantasia é onde o desejo se assenta. Uma criança sem fantasia é como uma terra infértil, sem lugar para outro desejo que não o da morte. E é o que Edmund faz: salta de um prédio em ruínas. Não havia diferenças entre seu mundo interior e o mundo real, tudo estava destruído.
O filme também nos faz perceber como é difícil entender a loucura e a crueldade da guerra. Será como entender o absurdo.
A modernidade estabeleceu que cada homem é um nosso semelhante. Aí vem a guerra e desmonta essa construção. Freud, que pensou o irracional, achava que só a civilização (que restringe nossas pulsões assassinas) é o que nos tira da barbárie. Penso que os atos criminosos individuais e as guerras são brechas através das quais nossa desrazão escapa. A busca de respeito ao outro não é mais o sonho atual, mas sim a constatação que as misérias que vemos nos outros são semelhantes às nossas.

Rianete Lopes Botelho, em: Jornal do grupo Cinema Paradiso, nº 328, 25/01/2013.

 

Abraço cinéfiTTTo a TTToDDDoSSS,
Marcos Êçá.

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