quarta-feira, 17 de outubro de 2012

FAZ TANTO TEMPO E EU AINDA ME COMOVO...

Abaixo reproduzo o belíssimo texto escrito por minha enorme e imensa amiga Rian, mulher guerreira, inteligente e foi/é excelente terapeuta...

FAZ TANTO TEMPO E EU AINDA ME COMOVO...

Discutimos no nosso grupo de cinema o filme de Ugo Giorgetti Cara ou Coroa. Vários filmes já trataram dos “anos de chumbo” da ditadura militar no Brasil, mostrando a questão da repressão, da perseguição, da tortura e de morte dos que ousaram se insurgir contra o arbítrio. É evidente a importância desses registros, para que as novas gerações conheçam a luta que muitos travaram contra a ditadura militar e o preço alto que pagaram por defenderem seus ideais de liberdade.
Mas, com sensibilidade e delicadeza, Cara ou Coroa mostra um retrato já distanciado pelo tempo, que tem como pano de fundo a ditadura, porém amplia seu foco para outras questões tão importantes quanto a denúncia. Em primeiro lugar, no filme não há maniqueísmo tão facilmente usado quando se enfrenta situações de gravidade como a que vivemos naquela época. Há uma certa tendência a glamourizar os que lutaram, como se todos fossem heróis sem mácula, enquanto o outro lado era formado só por monstros. Acho que isso tem a ver com nossos padrões infantis onde existem fadas e bruxas. Mas, como tudo na vida, nada é só preto ou só branco e sempre há nuances. Essa redução entre bons e maus, deuses e demônios, atende à nossa necessidade de simplificar as coisas, muitas vezes para não termos que admitir que cada um de nós traz em si aspectos contraditórios como cara e coroa de uma única moeda. No filme, as figuras do general e do taxista são emblemáticas: defensores do regime instaurado, mas ao mesmo tempo capazes de gestos humanitários.
Em segundo lugar, a questão que mais me sensibilizou foi a solidariedade, não só aquela declarada e atuante, como a sutilmente prestada com um “fazer de conta que não viu”, como no caso da empregada do general e até dele próprio.
Durante a discussão do filme (na reunião de 23/09 do Cinema Paradiso), vieram à tona exemplos reais de envolvimento de pessoas não militantes políticas, que corajosamente se expuseram dando guarida a perseguidos políticos e que, por isso, ou foram presos, torturados, ou foram obrigados a deixar clandestinamente o país por muitos anos, só podendo voltar depois da anistia.
O filme e, principalmente, a discussão, trouxeram de volta muito fortemente as lembranças daquele período como feridas que voltam a sangrar. Lembrar daquela época me comoveu bastante e mesmo agora, enquanto escrevo, me emociono. Na minha história pessoal eu experienciei perseguição política e prisões, mas também muita solidariedade, como em algumas situações que descrevo a seguir.
Quando minha casa foi invadida por homens do exército, eu e Leão (meu marido) não estávamos lá. Meus 4 filhos ficaram reféns como condição para que aparecêssemos. Depois de os aterrorizarem revistando toda a casa, desmontando a biblioteca e ameaçando levá-los para o Juizado de Menores, alegando abandono (nossa empregada lhes disse que estávamos viajando), ficaram dia e noite na porta de casa, dentro da viatura. Acompanhavam todos os passos de quem saísse de nossa casa - até a ida e a volta das crianças da escola! Fizemos planos de retirá-las de madrugada, depois de nos certificar de que uma a duas vezes por noite eles iam à padaria tomar café. Telefonei à minha vizinha Miranda Magnoli (professora da FAU) para avisar a Cema, nossa empregada, sobre o nosso plano. Durante a conversa, a estratégia foi mudando: eu tiraria as 3 crianças mais velhas da escola, enquanto Miranda tiraria Cema e o caçula pelo muro do quintal. Foi uma operação arriscada que felizmente deu certo. A entrada da minha vizinha nessa tarefa foi oferta dela, a que hesitei em aceitar para colocá-la em risco. Foi uma enorme manifestação de solidariedade pela qual eu sou grata o resto da minha vida.
A diretora da escola que me deu cobertura na retirada das crianças e que, meses depois, com a nossa volta para São Paulo (meu marido já estava, então, no exílio), ofereceu bolsa integral aos meus filhos. Amigos me hospedaram e aos nossos filhos quando os retiramos das mãos do exército. Outros, em ocasiões diferentes, nos emprestaram casa e apartamento quando precisamos ficar fora de casa. Marcus Pereira coordenou um movimento entre publicitários, que se cotizaram para pagar o aluguel de nossa casa enquanto Leão esteve no exílio.
Quando, alguns anos depois, fomos presos no Doi-Codi (Oban), três dos nossos filhos estavam de férias em Recife e somente minha filha mais velha estava conosco. Nosso maior desespero era saber que ela estava sozinha em casa, sem sequer saber de nossa prisão. Leão deu o telefone de sua secretária Mary a um carcereiro da Oban, que telefonou para ela. Mary levou nossa filha para sua casa até sermos libertados (bendito carcereiro e bendita Mary!!).
Nem mesmo nossos amigos advogados conseguiram qualquer informação a nosso respeito no DOI-CODI. Mas um deles, filho de um banqueiro que era amigo de um general, pôde intervir a nosso favor. Por prudência, nunca ninguém perguntou se houve ou não interferência do general para nossa soltura.
Houve muita solidariedade, mas também houve reações de afastamento de amigos, principalmente por medo das consequências, o que é compreensível, porque, afinal de contas, a opção de luta foi nossa e não deles.
Leão, que era um dos maiores salários da publicidade, ficou desempregado mais de 5 anos, até seu julgamento, tendo sido explorado por algumas agências, para quem ele prestava serviços (em casa), com remuneração aviltante. Uma dessas agências chegou a receber um prêmio internacional por uma campanha que, na verdade, foi feita por Leão. O prêmio e o mérito ficaram para o dono da agência.
Sempre que lembramos ou falamos sobre a ditadura militar no Brasil, o que fica ressaltado é a dor, o medo e todo o sofrimento pelo qual passamos e que tanto nos marcaram. O maior mérito de Cara ou Coroa, dentre tantos outros, é o de nos fazer recordar, com muita emoção, o que normalmente fica escondido sob o peso do sofrimento, que é exatamente o quanto recebemos de apoio, de acolhimento e até de sacrifício de tantas pessoas, sem o que certamente não teríamos sobrevivido. O conforto dessas lembranças é como o colo de mãe, que nos faz acreditar no lado positivo da humanidade. Talvez, por isso, o filme tanto me reconfortou.
Transcrevo uma nota de agradecimento que Leão publicou num jornal de São Paulo, porque achou que ele tem muito a ver com o filme em questão:

Aos amigos
Aos que concordando ou divergindo me ajudaram. Aos que principalmente protegeram meus filhos. Aos que acreditaram mais no meu silêncio que nas muitas versões. Aos que sem imprensa defenderam meu nome. Aos que sacrificaram salários e mesadas. Aos que não dormiram enquanto não me restituíram à aparente liberdade de ir-e-vir. A todos que se ofereceram - até desconhecidos alguns. Aos que não esconderam. Obrigado. Vocês confirmam inclusive que todos homem tem um Compromisso com os demais. E é como eu sempre pensei.
José Leão de Carvalho

Rianete Lopes Botelho

Além de bem escrito é um belíssimo texto.

Tenho enorme orgulho de ser amigo dessa mulher, senhora, ser humano, SERTÃO HUMANO.

Enorme abraço a todos,
Marcos.

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