Meu engraxate - Mário de Andrade
É por causa do meu engraxate que ando em plena desolação. Meu engraxate me deixou.
Passei duas vezes pela porta onde ele trabalhava e nada. Então me inquietei, não sei que doenças mortíferas, que mudança pra outras portas se pensaram em mim, resolvi perguntar para o menino que trabalhava na outra cadeira. O menino é um retalho de hungarês, cara de infeliz, não dá simpatia alguma. E tímido o que torna a gente muito combinado com o universo no propósito de desgraçar esses desgraçados de nascença. “Está vendendo bilhete de loteria”, respondeu antipático, me deixando numa perplexidade penosíssima: pronto! Estava sem engraxate! Os olhos do menino chispeavam ávidos, porque sou dos que ficam fregueses e dão gorjeta. Levei seguramente um minuto pra definir que tinha de continuar engraxando sapatos toda a minha vida e ali estava um menino que, a gente ensinando, podia ficar engraxate bom.
ANDRADE, Mário de. Os filhos da Candinha. São Paulo: Martins, 1963. p. 167.
Abraço literário a todos,
Marcos.
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