segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

HOMENAGEM A DANIEL PIZA

Há algum tempo, guardava o texto de Daniel Piza reproduzido abaixo como uma homenagem a esse jornalista que eu tanto admiro. Descanse em paz, querido Daniel.


O achado de Damásio

20.novembro.2011


António Damásio é um dos mais respeitados neurocientistas e neuroescritores do mundo. Desde O Erro de Descartes, vem desenvolvendo uma linha de pesquisa e pensamento bastante original, mostrando cientificamente por que corpo e mente não se separam como água e óleo. É um dos expoentes da “terceira cultura”, capaz de recorrer a pensadores das chamadas humanidades, como Spinoza ou, no novo livro, William James, para inspirar suas hipóteses. E, no entanto, ao contrário de tantos intelectuais com status semelhante – ou mesmo, em verdade, com status bem abaixo –, Damásio mudou algumas de suas ideias mais importantes e, atenção, por causa de achados alheios que o obrigaram a tanto. Como dizia Keynes, se os fatos mudam, as ideias também precisam mudar.

Esse é apenas um dos motivos para que não se deixe de dar ao novo livro de Damásio, E o Cérebro Criou o Homem (título original Self Comes to Mind: Constructing the Conscious Brain; editora Companhia das Letras, tradução Laura Teixeira Motta), a importância que merece. Como vivemos em tempos cínicos, e como Damásio é o primeiro a alertar que ainda conhecemos pouco sobre o complexo funcionamento cerebral, o risco é grande. Afinal, o que ele está dizendo agora bate ainda mais de frente com o senso comum, segundo o qual o coração toma decisões mais autênticas e a razão só ajuda quando não o atrapalha. Também nas artes e até em comentários esportivos somos obrigados a ouvir que “o corpo sabe antes”, como se qualquer nota de consciência fosse desafinar o gesto plástico e memorável da expressão pessoal.
Um dos conceitos mais caros de Damásio era o da “consciência central”, ou seja, uma série de atividades cerebrais que regulariam o funcionamento do corpo e das emoções sem participação alguma da “consciência ampliada”, aquela exercida pela linguagem e pelo raciocínio abstrato no córtex frontal. O que ele diz no novo livro é que, embora grande parte das ações e reações seja fisiológica, comandada pela homeostase, autônoma em relação às vontades do nosso eu, da nossa mente consciente (ou “self autobiográfico”, como diz), a interação entre essas duas camadas é muito mais rica e sutil do que ele supunha. Declaradamente, diante de novas pesquisas de imagem neuronal e de pacientes com lesões cerebrais, ele acaba de abandonar esse dualismo. “Hoje em dia vejo mais volatilidade na abrangência da consciência”, escreve. “Os níveis de consciência flutuam durante uma situação.”
As novas pesquisas vêm mostrando o papel muito maior de instâncias intermediárias – entre a recepção das informações do corpo e a elaboração da consciência verbal – do que se acreditava antes. No alto do tronco cerebral, no tálamo e nos córtices posteromediais, especialmente, as medições mostram atividades em frações de segundos que embutem muitas vezes o resultado do aprendizado passado (como jogador que treina bicicletas a semana toda para executá-la de “improviso” no domingo). O corpo não age sozinho; trabalha com predisposições, preconceitos, modulações e juízos aos eventos que o provocam o tempo todo. Moralidade, raciocínio e imaginação também atuam nas reações físicas às diversas situações, ainda que em “segunda natureza”.
A mente, nos termos de Damásio, faz um “documentário multimídia” para o corpo, editando o processo de tomada de decisões. Ela chega depois, evolutivamente, mas faz muita diferença… Somos seres biológicos, sim, mas também deliberamos orientações para nós mesmos, com imagens e mapas que influem até nas instâncias mais sentimentais e intuitivas. Com o tempo, teremos de deliberadamente mudar de ideia, como Damásio. Entre ilusões de livre-arbítrio e fatalismos subdarwinistas, ser humano é ser pensante.
Abraço com saudades dos textos de Daniel Piza,
Marcos.

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